Antes e depois de Lima Barreto
Gonzaga Rodrigues
Não é todo dia que se diz uma coisa destas: “Só o que nos comove e sacode aumenta a nossa cultura. Há pessoas, por exemplo, e eu me encontro entre elas, que depois de lerem Franz Kafka nunca mais são as mesmas.”
Assim escreve Ernesto Sábato, para quem, o principal problema do escritor talvez seja o de evitar a tentação de juntar palavras para fazer uma obra. E citando Claudel: “Não foram as palavras que fizeram a Odisseia, mas o contrário ”.
Isso me faz lembrar a sacudidela que recebi, há setenta anos, de Afonso Henriques de Lima Barreto, quando travei relações de profundas consequências (para mim) com a sua obra.
Nesse tempo eu ia ser doutor, como tantos outros, mas por ingrato infortúnio, a obra de Lima Barreto cortou-me a carreira. Talvez estivesse hoje desfrutando o privilégio da bacharelice, ou das ofertas prodigiosas do mestrado ou do doutorado, mas a obra do escritor produziu-me o primeiro e grande cataclisma, para usar a expressão do próprio Sábato.
Na verdade, ninguém pode passar ileso pela obra de Kafka, como nenhuma donzela do século XVIII pôde sair-se incólume e inviolada da leitura de Voltaire ou febrilmente contagiada pelo drama de Werther. Foram obras que fizeram cabeças, comoveram, sacudiram, deflagraram revoluções e até suicídios.
Examinando bem, talvez fosse Lima Barreto (o menos difundido dos nossos grandes escritores) um dos poucos em condições de produzir no leitor brasileiro da minha juventude, isto é, da década de 1950, esses cataclismas.
Basta lembrar o Floriano Peixoto das escolas, o Marechal de Ferro da apologia oficial, e o Floriano retratado na obra de Lima Barreto, um personagem inteiramente diferente. O Coelho Neto das antologias, de quatro adjetivos para cada substantivo, e o Coelho Neto que aparece redigindo o seu próprio elogio nas redações do “Escrivão Isaías Caminha”. Havia, portanto, um Coelho Neto institucional, que era o que o país venerava, e havia um outro Coelho Neto, que era o visto por Lima Barreto. Ao ufanismo do Conde Afonso Celso, para quem o nosso céu tornou-se mais azul, contrapôs-se o velho Policarpo Quaresma, que aprendeu tupi para não falar importado. Era um nacionalista ingênuo, sem patriotadas.
Pode-se dizer que todos os grandes escritores brasileiros, antes, durante e depois de Lima Barreto, encarnaram uma realidade, sentiram e sofreram o seu mundo, foram capazes de nos transmitir esse sentimento, mas poucos chegaram a nos transformar tão radicalmente. Eles todos nos dão uma experiência de humanidade, mas Lima Barreto nos faz mais humanos porque mais reais.
Portanto, de uma coisa estou certo: na falta de autores maiores, o leitor que entrei no “Isaías Caminha” e “Gonzaga de Sá”, antes crédulo e reverente, não saiu o mesmo do outro lado. Não digo, como Sábato, que Lima Barreto me tenha aumentado a cultura, mas foi o que me revolveu e me sacudiu. Não posso dizer que, depois de Lima, eu nunca mais tenha sido o mesmo, mas o mundo, este sim, passou a ser visto com outros olhos.
A propósito, vale a pena o depoimento de Jackson de Figueiredo: “Lima Barreto é, entre nós, na verdade, o tipo perfeito do analista social. Um analista que combate, que não ficou como Machado de Assis, por exemplo, no círculo de uma timidez intelectual esquiva ao julgamento…não tem as delicadezas, as intenções filosóficas de Machado, veladas pelo sorriso do cético. Antes de tudo é um forte, arremete, chicoteia os vendilhões da dignidade nacional.”