Hildeberto Barbosa Filho
Penso que o diário pode ser, sim, uma espécie de forma literária. Não somente se vem vazado em estilo poético, dentro do rigor artístico da linguagem e com evidentes marcas de literariedade. Quero crer que também existe algo de ficcional na sua escrita fragmentada, atenta ao passar dos dias e quase sempre entregue ao gosto da expansão confessional, aos predicados da observação, à capacidade reflexiva diante dos fatos, das pessoas, das ideias, dos conceitos, enfim, de tudo que possa atrair o olhar e o pensamento de quem o escreve. Diário é literatura, sim. Como as memórias, as confissões, as cartas e a autobiografia.
José Rodrigues de Paiva, professor aposentado da UFPE, português de origem e pernambucano por adoção, me faz meditar, a partir de As palavras e os dias: A memória do caminho 1 (Recife: Edições Dédalo, 2021), sobre os limites, os desvios, as finalidades e o sentido dessa escrita íntima, de sólida tradição na literatura francesa, com intensas ressonâncias nas letras de Portugal e do Brasil.
Aqui, tanto quanto em As palavras e os dias: Vergílio Ferreira (2006), comparece a figura do professor, do ensaísta e do leitor na sequência contínua dos registros, o que me permite ver o esforço disciplinado de um estudioso inteiramente dedicado às múltiplas tarefas de seu ofício. Seja na organização de um seminário, na elaboração de um texto para um congresso qualquer, na redação de um prefácio para uma obra literária; seja no comentário crítico acerca de algum livro, na anotação de algo a escrever ou mesmo na evocação de experiências pessoais e subjetivas, o autor vai compondo o testemunho diário a respeito dos acontecimentos de sua vida.
A família, as viagens, a universidade, os encontros, os natais e anos novos, assim como outras efemérides, preenchem os roteiros dessa aventura cotidiana, tanto a envolver o homem, na sua disposição psicológica diante dos ritos rotineiros da existência, quanto a figura do escritor, ficcionista, ensaísta e poeta, diante dos sortilégios da palavra literária. A propósito deste último aspecto, esclarece o autor, logo na anotação inicial, do dia 2 de janeiro de 2007: “{…} Felizmente passaram… o Natal e o ano velho. Sobrevivi à passagem, ao cinza intenso da melancolia, não muito estoicamente, como desejava, mas sobrevivi. Agora tento começar o ano novo, buscando repetir ou recuperar um vício antigo: o destas notas diarísticas, que talvez sejam a manifestação do oculto e inconfessado desejo de procurar inutilmente o tempo que a todos foge”.
Certamente. O diário, como as memórias e outros gêneros afins, trai, sem dúvida, um curioso compromisso com o tempo. Compromisso que parece se cristalizar na ambivalência intrínseca da própria escrita, naquilo que ela prefigura de instantâneo ou de duradouro, de banal ou de relevante, de factual ou de imaginário.
Aqui e ali, o professor José Rodrigues de Paiva, no quadro cronológico de 2007 a 2013, retoma os elementos ideativos desta reflexão filosófica como que a determinar a força do tempo, o físico e o metafísico, o da factualidade e o da duração, inscrevendo-se, por dentro, do discurso diarístico, enquanto voz substancial e perene. Perplexo face aos seus 62 anos, escreve, em 19 de novembro de 2007: “{…} Olho para trás e tudo o que vejo ou lembro parece ter acontecido ontem, anteontem, há uma semana, um mês, um ano e não há dez, ou quinze, ou vinte… A vertigem do tempo e o nada que somos nele. A vida que se vai concluindo (até quando?) e tão sem grandeza, tão sem realizações que realmente a justifiquem, tão sempre a mesma coisa, o ramerrão…”.
Seduz-me, em especial, as recorrentes notas de leitura, sobretudo as notas de “leituras de intervalo”, com seu poder de sugestão, sua pertinência pedagógica, sua força crítica, descortinando, assim, a personalidade de um leitor que, sem negar o peso de sua formação acadêmica, não se deixa, contudo, dominar pelo canto de sereia das teorias. Ao contrário: o leitor, aqui, assume, sem titubeios, suas preferências, seus gostos, suas afinidades, sem o desconforto das assertivas metodológicas e dos marcos teóricos que alicercem a opinião emitida. Só para dar um exemplo, recorro ao registro de 2 de novembro de 2009: “Terminei hoje a leitura de Caim, de Saramago, livro desencadeador de grande polêmica e de muitas fúrias contra o autor. Livro frustrante sob todos os aspectos, particularmente no que diz respeito à literatura. Absolutamente dispensável à obra do escritor”.
Só por momentos como este e por tantos outros que corporificam este diário, discordo do autor, quando, em nota introdutória, considera-o “Desnecessário, porque a ninguém aproveitará a sua leitura, a não ser a mim próprio”. Não. De maneira alguma. O gênero íntimo não se faz por exclusão. Balela esta história de que se escreve diário para si mesmo! Intimidade não quer dizer isolamento. Através do diário não só se conhece a pessoa que o escreve. Um mundo muito mais vasto se dá a conhecer, dando-se a conhecer, naturalmente, pelo filtro singular de um leitor especial. Sei que José Rodrigues de Paiva é um destes leitores.