Academia Paraibana de Letras

Neste espaço, o leitor encontrará uma seleção de colunas semanais publicadas por membros da Academia Paraibana de Letras, originalmente divulgadas em jornais e blogs. São textos que refletem a sensibilidade, a erudição e o olhar atento de nossos confrades sobre temas diversos, da vida cotidiana à crítica cultural.
Mais que palavras, são registros da memória intelectual paraibana — testemunhos que emocionam, provocam e permanecem. Ao reuni-los aqui, celebramos a escrita como expressão da alma e da identidade de nossa terra.

Rui Leitão

Coluna Semanal Jornal A União

O confronto esquerda-direita

No cenário político nacional, a luta pelo poder político vem sendo mantido através de um confronto entre as forças políticas de esquerda e de direita. Tais termos nasceram durante a Revolução Francesa, espalhando-se pelo mundo ocidental e contribuindo para que ocorresse uma transformação social e econômica. Na contemporaneidade, essas denominações também se definem como confrontos entre progressistas e reacionários,  conservadores contra liberais.
Com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, percebe-se que essas posturas ideológicas sofreram mudanças de compreensão em relação às identificações tradicionais. A esquerda foi impelida a se reorganizar, de forma a estabelecer uma nova configuração no sistema político mundial. A verdade é que as linhas divisórias entre esquerda e direita se tornaram menos nítidas.
Temos visto partidos de esquerda assumindo posições de direita em certas questões e vice-versa. Isso tem dificultado a rotulação esquerda-direita. Essa confusão ideológica fez surgir no Brasil um campo político apelidado de “centrão”, formado por parlamentares de direita, a partir de interesses corporativos e fisiológicos, praticando a troca de apoio a projetos do governo, por cargos em órgãos estatais e emendas parlamentares. Em anos recentes, algumas lideranças
políticas têm se alinhado com a estratégia da extrema direita internacional, produzindo narrativas conspiratórias com objetivos golpistas.
O ex-deputado federal José Dirceu analisa que os governos de esquerda muitas vezes se veem forçados a admitir alianças políticas que desfiguram o viés ideológico de origem. Assim ele explica o terceiro Governo Lula: “Foi montado um governo que não é de centro-esquerda, pois é um governo que tem apoio da direita. Eu falo isso e todo mundo fica indignado dentro do PT. Mas essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos. Tendo um pequeno número de parlamentares no Congresso, se vê obrigado a fazer alianças para fora do escopo da esquerda”.
Não há homogeneidade no ativismo político desses grupos antagônicos. Neles encontramos correntes que possuem uma base social mais orgânica, enquanto outros são controlados por cúpulas e burocracias autônomas. Essa confusão ideológica provoca mudanças de acordo com a conjuntura política. Porém, a identificação das organizações e indivíduos da direita se afirma por princípios da ideologia liberal, na defesa intransigente da propriedade privada, da meritocracia e da livre iniciativa do mercado, ainda que entre eles existam divergências programáticas ou pontuais. Todavia, há um ponto em comum: o posicionamento contra os interesses e lutas da classe trabalhadora.
Já os partidos e movimentos sociais identificados como de esquerda defendem ideias em consonância com os princípios de igualdade, justiça, liberdade e solidariedade, criticando os alicerces que sustentam o modo de produção capitalista, a exploração do trabalho e a violência praticada pelo Estado burguês. Esses militantes políticos são classificados por seus opositores, como comunistas, anarquistas e socialistas.
O mais preocupante nesse confronto político-ideológico é o tom das campanhas eleitorais, influenciadas pelos discursos de raiva e indignação, na conformidade do humor da opinião pública. Essa fragmentação partidária e inconsistências ideológicas colaboram para que se pratique o oportunismo eleitoral. “O mais preocupante nesse confronto político-ideológico é o tom das campanhas eleitorais” – Rui Leitão, para o Jornal A União – João Pessoa, Paraíba – DOMINGO, 22 de junho de 2025; Ano CXXXII número 121.

Gonzaga Rodrigues

Era no tempo de JK x Lacerda… 

Era a minha estreia no Rio de Janeiro, levado no meio de uma delegação de militantes da secção local da União Brasileira de Escritores, uma das muitas entidades culturais dos anos 1950 que funcionavam a pretexto de justificar o patrocínio dessas iniciativas. Íamos participar de um festival de escritores, creio que o primeiro no Brasil, e me incluíram nessa delegação beneficiada pelos estímulos à cultura no Governo Pedro Gondim.
Não deixa de ter sido estímulo, uma forte emoção no meu caso. Descer no Rio de Janeiro que a música popular brasileira tornara de todos nós. Tão longe de Alagoa Nova e tão dentro de nós pelas vozes de Marlene, de Dircinha, de Dalva de Oliveira em sua “Ave Maria no morro”. De fazer ajoelhar. Vozes portadoras de um Rio mais buliçoso, já sem o charme machadiano das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias, transferido por Diky Farney ou Lucio Alves para Copacabana, a princesinha do mar.
E eis-nos na Praça Paris, tão feinha, onde ficava a pensão. Como era o nome da rua? Não tenho mais a quem perguntar. Além de Cartaxo, éramos Wilton Veloso, Waldemar Duarte, Wills e Carlos Romero. E na mesma noite nos vimos cara a cara, em carne e osso, com as entidades míticas que encimavam as capas do Jubiabá, do São Bernardo, da Evocação do Recife, da última página de O Cruzeiro corporizada em Rachel de Queiroz ou do rodapé do Jornal do Brasil de Alceu Amoroso Lima. Muita gente doida, frenesi, a empacar minha timidez na procura ansiosa dos mitos do meu convívio delirante com seus livros.
Eu estava diretamente interessado, de modo contrito, em Graciliano Ramos, que já não se chateava mais entre os vivos, mas intensamente vivo aparecia ali, representado por D. Eloísa, a esposa. Já era muito para a minha admiração fervorosa. A Eloísa que eu antevira nas “Memórias do Cárcere”, na partida de trem do marido para a prisão no Recife, nas peregrinações pela Colônia Penal, a se confortar naqueles poucos e atormentados minutos de convívio vigiado.
De repente, todo o shopping center acorre barulhento e volumoso a um dos acessos do festival. Nesse tempo, o substantivo “pão” deixava de ser o da padaria para se tornar o “gatão”, uma interjeição de sexo e volúpia.
E vi rolar sobre mim um bando de amazonas, nuas dentro do vestido, aos gritos de “pão”, ele é um “pão”, o que já haviam feito, minutos antes, com a chegada de Cauby Peixoto. Dessa vez o pão era Lacerda, que entrava trazido pela onda de cabeças femininas. Minutos depois via-se o mesmo com Juscelino.
Olhei Lacerda de perto, naqueles olhos duros e severos, e, por mais que me intrigassem as suas ideias, deslumbrou-me a onda solta em que navegava. A fera com as suas fagulhas de tribuno cedia o lugar, de repente, ao narrador de Xanam e outras histórias, lançado àquela hora, e que o escritor, o memorialista de “A Casa do meu avô” viria confirmar.
Anos depois, muito depois, estou no primeiro gole de café, não no Rio, mas em Campina Grande, quando descubro, vizinho a mim no mesmo balcão, a figura única de Lacerda. Sem gritaria nem multidão, tomando o São Braz que eu tomava num balcão que sempre me pareceu. “E eis-nos na Praça Paris, tão feinha, onde ficava a pensão. Como era o nome da rua?” – Gonzaga Rodrigues, para o Jornal A União – João Pessoa, Paraíba – DOMINGO, 22 de junho de 2025; Ano CXXXII número 121.

Hildeberto Barbosa Filho

A palavra literária

Machado de Assis, Ascendino Leite, Gonzaga Rodrigues e Jean Paul Sartre. Quatro nomes, quatro personalidades do mundo literário. Pela ordem cronológica, nasceram, respectivamente, em 1839, 1915, 1933 e 1905. Todos num dia 21 de junho. São, portanto, cancerianos e, talvez por isso, dentro das circunstâncias zodiacais, tenham muita coisa em comum, apesar das visíveis e incontornáveis diferenças que os singularizam na vida.
Decerto não reside nesta data específica o ponto de convergência que possa uni-los no andamento do destino e da sorte. Afinal, datas são apenas datas, sinais mais ou menos neutros na compassiva e inevitável clareira do tempo cronológico. Sim, porque sabemos existir um outro tempo, um tempo psicológico ou um tempo da emoção que, filtrando segundos, minutos e horas, fora do estreito das exatas aritméticas, promove o fluxo de novas sensações e de múltiplas percepções, simultâneas e inusitadas.
Dos quatro, privei da amizade pessoal de dois, Ascendino e Gonzaga. Com os outros só convivi através da felicidade da leitura, usufruindo o privilégio e o prazer de ter, sempre à mão, o luminoso peso da palavra literária.
A palavra literária, eis, quem sabe, o eixo nuclear que os aproxima, que os irmana, que os identifica, à parte quaisquer fatores de ordem astrológica ou transcendental. Claro, cada um é muito diferente do outro, se pensarmos na luta diária com os sortilégios da palavra. Não obstante, sinto, em cada um, e em cada um a seu modo, o gosto especial por este insubstituível meio de comunicação e de expressão.
Machado, Ascendino, Gonzaga e Sartre deram as suas vidas ao reinado da palavra. Cuidaram da palavra com zelo, amor e veneração. Fizeram da palavra o elemento seminal de suas emoções e de seus sentimentos, atentos, no entanto, já em outra clave, aos vestígios de beleza que ela pode deixar em meio aos apelos do saber e da verdade.
Machado a torna dúctil, flexível, oblíqua, ambivalente, carregada de sabor irônico e mesclada, aqui e ali, com as tintas turvas da melancolia. No conto, no romance, na crônica, e mesmo na crítica, a palavra não nega a elegância e a coloquialidade do estilo, sempre se perfazendo modelo da melhor lição estética.
Ascendino, que leu Machado, embora o tenha lido de maneira meio enviesada, também me parece um estilista. Um estilista puro. Principalmente, se me debruço sobre as infinitas páginas do seu Jornal Literário. Contando com mais de 20 volumes ininterruptos, cheio de títulos insinuantes, essa obra contém impressões, comentários, testemunhos, memórias, dados e informações acerca dos bastidores da vida literária do país. A matéria é rica e variada, mas, ao fim, o que encanta o leitor, pelo menos o leitor que sou, é o brilho da frase, a contenção e a medida do estilo.
Gonzaga, dos quatro, é o único que está vivo e em plena atividade. Gonzaga é o típico escritor-cronista ou cronista-escritor, à maneira de um Rubem Braga, por exemplo. Sem dúvida leu Machado, leu Ascendino, leu alguma coisa de Sartre, pois o autor de Notas do Meu Lugar, foi tocado, desde menino, pelo vírus benfazejo da leitura. Nas suas crônicas exige o melhor tratamento para a palavra. Seja a palavra afetada pela indignação social e pelo sentido humano de justiça, seja a palavra vestida com a sobriedade e a delicadeza da melhor poesia. Palavra lírica, por excelência. Vejo também, na singeleza do seu sítio idiomático e expressivo, a umidade da terra e o gosto brejeiro de uma saudade permanente.
Sartre, o único de fora neste quarteto, fez da palavra o início e o fim de sua trajetória intelectual. Filósofo, romancista, dramaturgo, ensaísta, militante político, usou a palavra como instrumento de combate e como suporte indispensável à produção do pensamento e ao exercício da criação. Ao mesmo tempo em que se valeu da palavra na construção do estilo e na densidade da reflexão crítica, soube, como poucos, teorizar suas possibilidades e direções. Com ele aprendi, certa feita, que a palavra, no poema, é uma palavra com música. Portanto, uma palavra especial, dotada de arranjos e harmonias melódicas que ultrapassam as fronteiras convencionais da prosa.
O 21 de junho, o dia, a data, possui, sem dúvida, sua nota simbólica. No entanto, creio estar no valor da palavra literária o elo de semelhança entre estes quatro autores, em meio às suas múltiplas diferenças. Ontem foi 21 de junho. Gonzaga completou 92 anos. Deixo-lhe, aqui, os meus parabéns! – Hildeberto Barbosa Filho, para o Jornal A União – João Pessoa, Paraíba – DOMINGO, 22 de junho de 2025; Ano CXXXII número 121.